Se ainda restam dúvidas a respeito do racismo, temos um fato a declarar: sim, ainda existe racismo no Brasil, responsável pela manutenção e perpetuação das desigualdades sociais no país. Compreender o racismo é fundamental para entender as relações socioeconômicas. No capitalismo as relações sociais a partir do recorte racial produzem um sistema de opressão e dominação: sistema este que restringe grandemente o acesso aos bens sociais para os afrodescendentes, além de demarcar as perspectivas culturais e políticas. Precisamos reconhecer que não existe a fantasiosa igualdade de oportunidades no Brasil, e que os sistemas de inclusão, apesar de serem importantes e fundamentais no processo de construção de uma sociedade mais justa, são por vezes controlados e dissemelhantes. Se não refletirmos sobre isso, tendemos a permanecer com os conformismos e descasos que “[...] processam a ideia vil de que se trata apenas de um problema de pobreza. Sem questionarem a produção diferenciada da pobreza entre as etnias e os problemas em si” (CUNHA JÚNIOR, 2001, p. 6).
Racismo, diferentemente do que pensam, não tem relação direta com ideias sobre “raça”; como afirma Cunha Júnior (2001), racismos são processos de dominação, manutenção de privilégios e valorização histórica de uma “raça” em detrimento de outra, para que os pretos sejam vistos como seres não pensantes, sem engajamento político e muito menos produtores de ideias; enfim o racismo incita a sermos vistos como indivíduos sociais incapazes.
Daí, surge a necessidade de ressaltar o que a sociedade já devia ter consciência: os africanos e afrodescendentes brasileiros escravizados e libertos sempre resistiram contra a escravidão. O fato de a escravidão ter persistido no Brasil durante cerca de 300 anos não significa que os indivíduos em situação de subalternização se conformavam com aquela condição. Devido a isso, estamos cansados da apresentação superficial e errônea da mídia e por uma quantidade significativa de professores de história, como se os índios fossem os “únicos” povos que resistiram contra o processo de escravização.
Mas, a questão é que os afrodescendentes também resistiram, formaram quilombos, que além de serem lugares formados por pretos que fugiam de uma realidade que tentavam lhe impor através de castigos, torturas e humilhações, são também lugares de luta contra a opressão e, acima disso, uma forma de independência econômica, social e cultural. Os afrodescendentes tentaram de maneiras incontáveis preservar a nossa cultura e “raça”. As formas de resistências foram múltiplas, como: fugas, revoltas, mortes de escravizadores, suicídios dos escravizados e abortos por parte das mulheres escravizadas (CUNHA JÚNIOR, 2001)
Isso significa que nunca fomos passivos ou os “eternos escravizados/fugidos vencidos”. Como destaca Beatriz Nascimento (2018, p. 131), devemos “conscientizar, mentalizar os grupos negros de que qualquer agrupamento que a gente faça, qualquer relação que a gente tenha entre si, cada vez a gente está repetindo a forma de resistência cultural e racial e a possibilidade de criarmos, realmente, uma sociedade paralela, mais atuante dentro da nossa sociedade global que tanto nos oprimiu”.
Outra forma de resistência perpassa pela valorização dos traços fenótipos negros; tem relação direta com a valorização e conhecimento ancestral. Por exemplo, a utilização do cabelo crespo manifesta-se como forma política de contrapor as narrativas e imposições coloniais que permanecem no imaginário social, no qual, ao assumirem seus cabelos como são, as mulheres negras estão afirmando para a sociedade que as desaprovam que não irão mais admitir essa imposição de um único padrão de beleza, pois hoje elas investigam e conhecem suas origens. Afinal, é um método de ressignificar o corpo negro, desmontando e descolonizando uma imagem negativa presente na memória que o negro tinha com o seu fenótipo (LOPES; FIGUEIREDO, 2015).
Diante disso, aparece a importância da consciência “negra”; ela surgirá quando desde a educação básica até o nível superior deixarem de prestar o desserviço da não informação e ausência da problematização sobre africanidade¹ e afrodescendência² para seus alunos e, consequentemente, a sociedade. É necessário o rompimento dos silêncios existentes no campo da educação em relação à discussão sobre temas de interesse e às particularidades sobre a população afrodescendente. Pois, “O Europeu é compulsório no Brasil. Quase somente ele (Europeu) pensa culturalmente. Não são lidos os intelectuais africanos nas universidades brasileiras. Nem mesmo reconhecem a existência destes” (CUNHA JÚNIOR, 2001, p. 8).
São por essas razões que, somos nós pretos/negros, primeiramente devemos ter a “consciência” ancestral vinculada às nossas origens; pois é a partir do nosso lugar de fala que conseguiremos quebrar os estigmas e alienações sobre o nosso povo. Mostraremos à sociedade como nos empoderamos, vencemos, nos relacionamos amorosamente uns com os outros e nos achamos lindos. Não precisamos que os outros nos falem e confirmem isso, precisamos apenas de autoestima e autoafirmação, pois só assim apresentaremos para a sociedade como é ser antirracista.
Enfim, sobre o que devemos nos conscientizar no dia 20 de novembro? Antes de sermos antirracistas, precisamos nos conscientizar que os afrodescendentes brasileiros tiveram uma história de indubitável importância para ser estudada, esmiuçada, compreendida e valorizada. Porque é entendendo sobre quem fomos, quem somos e quem nos tornaremos que estará fincada a potência da consciência negra.
¹ Africanidade é a reelaboração para pensar a ideia de culturas afrodescendentes e da existência de um conjunto amplo, indo do pensamento brasileiro à base material da cultura brasileira (CUNHA JÚNIOR, 2001, p.12).
² Afrodescendência é o reconhecimento da existência de uma etnia de descendência africana (CUNHA JÚNIOR, 2001, p.11).
REFERÊNCIAS:
CUNHA JÚNIOR, Henrique. Africanidades, afrodescendência e educação. Revista Educação em Debate, ano 23, n. 2 - no. 42, Fortaleza: FACED/UFC, 2001. p. 05-15.
LOPES, Dailza; FIGUEIREDO, Ângela. Fios que tecem a história: o cabelo crespo entre antigas e novas formas de ativismo. Salvador-Bahia, 2015.
NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias de destruição. União dos Coletivos Pan-Africanistas (org). São Paulo: Filhos da África, 2018.