Projeto de “urbanização” Lagoas e das Dunas do Abaeté e PL n°411 - Um ataque ao meio ambiente, à laicidade, à memória, ao sagrado e à ancestralidade

Texto de Laís Passos

Publicado em 14 de fevereiro de 2022

 

 

Na última quinta-feira (dia 10/02/22), a Prefeitura Municipal de Salvador apresentou uma proposta voltada para a urbanização da área das Lagoas e Dunas do Abaeté, localizada no bairro de Itapuã. Elaborado pela Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra), o projeto prevê a construção de um espaço para receber religiosos (mais especificamente grupos cristãos protestantes), áreas administrativas, espaços de lazer, sanitários, estacionamento, bem como obras de paisagismo, iluminação e drenagem, numa área de 5.654 m², sendo 1.900 m² de área construída, com investimento de aproximadamente de R$5 milhões. Além disso, e através de um Projeto de Lei (PL n°411) criado pelo vereador Isnard Araújo, propõe-se também a mudança do nome de uma das dunas da área das Lagoas e das Dunas do Abaeté para “Monte Santo Deus Proverá”.

Localizada na porção nordeste de Salvador, e atuando como ponto de conexão com o Litoral Norte da Bahia, a área das Lagoas e Dunas do Abaeté é considerada uma Área de Proteção Ambiental (APA), delimitada pelo Decreto nº 351 de 22 de setembro de 1987 e definida, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), como uma área geralmente extensa, composta por características bióticas, abióticas, estéticas ou culturais que contribuem para a qualidade de vida e bem estar da população, podendo ter um certo grau de ocupação humana de maneira disciplinar e controlada, protegendo e assegurando, a diversidade biológica e a utilização dos recursos naturais e sustentáveis.

Segundo o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), a APA das Lagoas e Dunas do Abaeté é um dos últimos remanescentes de sistemas de lagoas, dunas e restingas ainda conservadas no município de Salvador, sendo de extrema importância para preservação do meio ambiente, da fauna e da flora locais. Mas não só isso! Ponto de encontro das lavadeiras ao longo dos séculos, cenário de diversas manifestações culturais, e bastante conhecida na cidade, de Dorival Caymmi às Ganhadeiras de Itapuã, a área das Lagoas e Dunas do Abaeté, já foi contemplada, cantada e homenageada, sendo atualmente um local de extrema importância para os grupos de religiões de matriz africana, que promovem seus cultos no local.

Esta lagoa constitui a marca tanto de um grupo social como de uma prática religiosa pertencente, historicamente, aos afro-brasi-leiros (SILVA, 1993, p. 129) O Abaeté e seu conjunto de dunas e lagunas assumem, desta forma, caráter de espaço de referência social. Pela ótica do ecologis-mo, revela-se a heterogeneidade de representações a seu respeito e, por conseguinte, complexidade da gestão deste espaço pelos poderes públicos frente às expectativas coletivas mais diversas. Entretanto, esta lagoa só se inscreve, verdadeiramente, enquanto lugar onde se manifesta uma identidade coletiva em função do seu conteúdo sagrado, onírico e poético. Principalmente o sagrado lhe concedeu uma forte influência. Necessária, na medida onde o econômico e o racional intervêm brutalmente como determinantes, em última instância, na estruturação do espaço. O desaparecimento deste lugar pesa, então, sobre a identidade do bairro e da cidade. (SILVA, 1993, p. 129 - grifo nosso)

Conforme dados coletados pelo Mapeamento dos Terreiros de Salvador, sabe-se que existem diversos terreiros espalhados pelo bairro de Itapuã. Sabe-se também que ao longo dos anos, a área das Lagoas e Dunas do Abaeté foi completamente e propositalmente ignorada pelo poder público e graças a esses grupos, o local se manteve e se mantém preservado, vivo e reverenciado até hoje, mesmo diante de tanta invisibilização, preterimento, racismo e intolerância.

Segundo o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), ao longo dos anos, a área vem enfrentando diversos conflitos ambientais relacionados à degradação, desmatamento e especulação imobiliária. Nesse sentido podemos refletir sobre alguns conceitos muito importantes referentes à análise do espaço urbano sob a perspectiva do “valor de uso”, “valor de troca” e no real papel da gestão urbana realizada pelo poder público, já que existem interesses distintos sobre o uso e ocupação do solo na área das Lagoas e das Dunas do Abaeté.

Uma segunda dimensão da denúncia ambientalista se refere à gestão urbana, propriamente dita, e à incapacidade dos administradores municipais e estaduais em efetivar um planejamento urbanístico para a área, desde 1972, quando da elaboração do Código de Urbanismo de Salvador. O alvo privilegiado serão os parcelamentos ilegais sobre as dunas, consolidados ou em consolidação, o projeto de ampliação do aeroporto internacional contíguo ao ecossistema, a especulação imobiliária na área do Parque Metropolitano de Dunas e Lagunas do Abaeté. (SILVA, 1993, p. 131)

O projeto anunciado pelo prefeito Bruno Reis, que nitidamente atende a uma parcela específica da população, é pautado pelo fundamentalismo religioso e pelo apagamento das religiões de matriz africana. No entanto, essa proposta não é um caso isolado, tendo em vista que diversos terrenos públicos estão sendo leiloados em Salvador, como já publicamos anteriormente no observaSSA. Tudo isso, nos leva a entender que a cidade tem sido tratada como mercadoria. Mas afinal, com um investimento tão alto (R$5 milhões), não seria possível valorizar a área das Lagoas e Dunas do Abaeté sem promover o apagamento daqueles que realmente a ocupam? Por que beneficiar um grupo específico? Por que não há diálogo com a população? Quem de fato lucra com esse projeto?  Para quem a cidade é feita?

Nos últimos tempos, vocês viram por aqui, a divulgação de diversas notícias, nas quais citamos a Prefeitura Municipal de Salvador. No entanto, vale ressaltar que essa divulgação não é feita com o intuito de criar uma peça publicitária governamental, mas sim para informar sobre as ações que estão sendo realizadas na cidade e, principalmente, criar um debate em torno delas, de maneira objetiva, crítica e coerente. 

Nós do observaSSA não compactuamos com um governo e com uma gestão que promovem, de forma cada vez mais acelerada e nas mais variadas formas, um projeto de extermínio da população, do patrimônio, da educação, da cultura, da história e do meio ambiente.  A PL n°411, com seu “Monte Santo Deus proverá”, desrespeita a laicidade, a memória, o sagrado e a ancestralidade.

 

 

REFERÊNCIAS:

CORREIO 24h. Prefeito apresenta projeto para urbanizar área das dunas de Itapuã. CORREIO 24h. 10 fev. 2022. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/prefeito-apresenta-projeto... . Acesso em: 10 fev. 2022.

LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

INSTITUTO DE MEIO AMBIENTE E RECURSOS HÍDRICOS. Unidades de Conservação - APA. Disponível em: <http://www.inema.ba.gov.br/gestao-2/unidades-de-conservacao/apa/>. Acesso

em: 10 fev. 2022.

INSTITUTO DE MEIO AMBIENTE E RECURSOS HÍDRICOS. Unidades de Conservação - APA - APA Lagoas e Dunas do Abaeté. Disponível em: <http://www.inema.ba.gov.br/gestao-2/unidades-de-conservacao/apa/apa-lago.... Acesso em: 10 fev. 2022.

MAPEAMENTOS DOS TERREIROS DE SALVADOR. Consulta - Terreiros - Itapuã. Disponível em: <http://www.terreiros.ceao.ufba.br/terreiro/config/>. Acesso em: 10 fev. 2022.

SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.

SILVA, Paulo R. Gumarães da. IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E ECOLOGISMO:  O CASO DA LAGOA DO ABAETÉ. 1993. p. 177 - 137  Acesso em: 10 fev. 2022.

SECRETARIA MUNICIPAL DE INFRAESTRUTURA E OBRAS PÚBLICAS. Prefeitura apresenta projeto para urbanização das Dunas de Itapuã. 10 fev. 2022. Disponível em: <http://seinfra.salvador.ba.gov.br/index.php/noticias/644-prefeitura-apre.... Acesso em: 10 fev. 2022.